Neste momento em que o corpo técnico do Arquivo Nacional foi surpreendido com a publicação do decreto n. 11.437, de 17 de março de 2023, essa nota busca esclarecer questões controversas e reforçar a urgência de um diálogo aberto entre a direção e os servidores. O decreto pela primeira vez instituiu em um ato legal a chamada guarda compartilhada na administração pública federal, que permite aos órgãos e entidades a guarda, preservação e acesso à documentação arquivística permanente, antes atribuição exclusiva do Arquivo Nacional. Esta proposição constituiu-se no objeto central da Política de Gestão de Documentos e Arquivos da Administração Pública Federal (PGDeArq), a ser implementada pelo Programa de Gestão de Documentos e Arquivos (Proged), que não chegou a ser aprovado na gestão anterior, mas, surpreendentemente, consta do decreto aprovado na gestão vigente do Arquivo Nacional e do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.
Ainda que não pareça tão claro para os recém-chegados ao debate, o decreto n. 11.437/2023 trata da custódia compartilhada em vários de seus artigos. No art. 56, que define as competências da Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo, o inciso VIII refere-se claramente ao papel da diretoria, em articulação com a Diretoria de Gestão de Documentos e Arquivos, na elaboração de diretrizes e normas “para disciplinar, no âmbito do Siga, os procedimentos técnicos relativos às atividades de processamento técnico, preservação, custódia e acesso a acervos”. O inciso IX é ainda mais claro, ao definir que à diretoria também cabe a supervisão e orientação para o cumprimento “dos requisitos e das condições para a custódia de documentos de guarda permanente e a aplicação dos procedimentos e das operações referentes ao processamento técnico, à preservação e ao acesso a acervos pelos órgãos e pelas entidades integrantes do Siga”. Para quem não entendeu, trata-se da guarda de documentos em idade permanente pelos órgãos e entidades do Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos (Siga).
No artigo 57, que define as competências da Diretoria de Gestão de Documentos e Arquivos, a proposição da custódia compartilhada aparece mais uma vez, no inciso V, que confere à diretoria a atribuição de elaborar e propor, em articulação com a Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo, “diretrizes e normas para disciplinar, no âmbito do Siga, os procedimentos técnicos relativos às atividades de processamento técnico, preservação, custódia e acesso a acervos, qualquer que seja o suporte ou a natureza dos documentos”. O que o decreto institui, de acordo com o que foi previsto pelas direções anteriores, mas somente agora formalizado, é que à Diretoria de Gestão de Documentos e Arquivos cabe disciplinar tais atividades no âmbito do Siga em conjunto com a Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso, que por sua vez realizará a supervisão dos integrantes do Siga com relação à guarda compartilhada.
A manutenção da guarda compartilhada no decreto 11.437/2023 fragiliza a missão institucional do Arquivo Nacional, de preservação e acesso ao acervo arquivístico do Poder Executivo federal. A guarda compartilhada está em acordo com a política de terceirização dos serviços arquivísticos que vinha sendo incentivada e estimulada pelas direções anteriores, e representa uma ameaça à preservação dos documentos públicos, pois confere aos órgãos e entidades função estranha às suas missões institucionais. Os órgãos e entidades não estão preparados para assumir essa guarda compartilhada e, certamente, a terceirização dos serviços arquivísticos será a solução adotada. Por outro lado, chamamos atenção para o incentivo à terceirização dos serviços arquivísticos no próprio Arquivo Nacional, que aparece no decreto de forma tangencial, na medida em que sucateia a área finalística ao cortar as unidades administrativas que tratam diretamente dos documentos. Essa reestruturação administrativa, ao extinguir cinco divisões, enfraquece a área de processamento técnico do acervo e de acesso, e propicia a terceirização dos serviços arquivísticos dentro do Arquivo Nacional, conforme o projeto das últimas direções. Chama-se à atenção que a terceirização desses serviços foi incluída em um dos principais projetos estratégicos do Arquivo Nacional no final de 2022, apesar da resistência apresentada pelo corpo técnico.
Outros aspectos devem ainda ser ressaltados no decreto n. 11.437/2023, como a manutenção do complemento “e arquivos” na denominação da Diretoria de Gestão de Documentos e Arquivos. Tal imprecisão já havia sido informada no relatório entregue para a nova direção, apontando que, no âmbito do Arquivo Nacional, os arquivos permanentes são tratados pela área de Processamento Técnico do Acervo, denominada Diretoria de Processamento Técnico do Acervo na nova estrutura, de forma que a área de gestão de documentos não pode interferir nas atribuições da outra que é responsável pelos arquivos permanentes. Esse equívoco foi herança da alteração promovida no nome do SIGA, criado em 2003 pelo decreto n. 4915, de 12 de dezembro de 2003, como Sistema de Gestão de Documentos de Arquivo, e alterado para Sistema de Gestão de Documentos e Arquivos. Essa mudança, promovida desde a aprovação do decreto n. 10.148/2019, sugere a nova função atribuída ao Arquivo Nacional: monitorar a guarda, a preservação e o acesso à documentação arquivística permanente custodiada de forma compartilhada pelos órgãos e entidades da administração pública federal, por isso a inclusão de “e arquivos”, e não apenas “documentos”.
O decreto n. 11.437/2023 também manteve em seu texto a política de entrada de acervos privados que havia sido alterada por direção anterior, conforme portaria n. 311, de 9 de setembro de 2019, desconsiderando estudos e discussões técnicas de especialistas da área. O decreto reafirma a perda de autonomia do Arquivo Nacional na definição na política de entrada desses acervos, que ficou subordinada à declaração de interesse público e social pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) a partir de recomendação do Conselho Nacional de Arquivos (Conarq).
A nota conjunta do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e do Arquivo Nacional afirma que rejeitam qualquer projeto de terceirização ou guarda compartilhada de documentos públicos. No entanto, se recusam tal proposta, porque mantiveram no texto do decreto n. 11.437/2023 questões já amplamente debatidas e recusadas pelo corpo técnico? Não cabe continuar a declarar que o decreto não previu a guarda compartilhada. Conforme apresentado nesta nota, o texto do decreto trata explicitamente da guarda compartilhada e propicia o projeto de terceirização dos serviços arquivísticos. A nota conjunta não responde aos questionamentos levantados pelos servidores no diagnóstico apresentado pela Associação dos servidores do Arquivo Nacional à direção-geral do Arquivo Nacional, em 8/3.
Para além da prestação de orientação técnica, das ações de capacitação de servidores e do desenvolvimento de estudos e instrumentos normativos pelo Arquivo Nacional, é fundamental que o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e a direção-geral atuem no sentido de garantir que a instituição cumpra efetivamente seu papel na administração pública federal. Reivindicamos a revisão democrática, com participação do corpo técnico do Arquivo Nacional, das normas regimentais estabelecidas pelo decreto n. 11.437/2023.
*Publicado na página da Assan no Facebook em 05/04/2023.
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